Notas sobre o seminário “Doçaria popular e dinâmicas do patrimônio cultural”

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No dia 6 de dezembro de 2017 celebrou-se um seminário permanente de investigação e desenvolvimento (SPID) do CETRAD sobre o papel sociocultural dos doces tradicionais e as dinâmicas de patrimonialização destes. No seminário participaram cerca de 50 pessoas, especialmente alunos da licenciatura em turismo da UTAD, investigadores do CETRAD e professores da UTAD. A sessão de abertura foi feita pelo diretor da licenciatura em turismo da UTAD (Prof. Xerardo Pereiro), quem destacou a importância da ligação entre investigação e docência e enquadrou esta atividade na unidade curricular de “Turismo, Agricultura e Alimentação”, nas linhas de investigação do CETRAD e no grupo de investigação sobre património cultural, turismo e identidades.

A continuação, o antropólogo Ricardo Manuel Ferreira de Almeida apresentou a sua investigação, em curso, sobre a doçaria tradicional em Vila Real (Trás-os-Montes e Alto Douro), focando o exemplo dos pitos de Santa Luzia. Com invenção documentada de Ermelinda Correia, uma mulher que viveu entre os séculos XVIII e XIX, este doce tradicional é hoje oferecido pelas mulheres aos homens em Vila Real no dia 13 de dezembro (dia de Santa Luzia), e mais tarde numa relação de dádiva e contra dádiva, os homens oferecem uma gancha às mulheres no dia 3 de fevereiro, no dia de São Brás. Os pitos são um doce feito com massa de pão trigo, açúcar – antes mel-, canela e abóbora, que com forma antropomórfica são parte de um código de comunicação cultural entre género-sexo masculino e feminino, uma construção sociocultural não isento de discursos tradicionais míticos que unem atributos simbólicos e tempos no calendário cíclico anual. Ricardo Almeida fez uma desconstrução dos mitos do pito e da gancha (ex. a sua origem celta), e do seu ritual, que integra elementos sagrados e profanos, como se pode observar na capela de Santa Luzia de Vila Nova de Cima o dia 13 de dezembro de cada ano. O antropólogo afirmou que o escritor Juvenal Cardápio, inventou numa obra de 1992 uma história que hoje se reproduz em receitas, imagens turísticas, discursos identitários e outros. Ricardo Almeida frisou a sua análise documental e biográfica dos borrosos contornos da figura de Ermelinda Correia, freira do Convento de Santa Clara de Vila Real ou criada não sabemos, a quem se lhe atribui a criação do doce do pito. O antropólogo sublinhou que o ritual dos pitos e das ganchas envolvem os sentidos de festa, comensalidade, troca de géneros alimentares, evocação da sexualidade, antropomorfismo corporal e mitologia local. O orador, que fez uma magnífica apresentação e cativou o auditório, não descurou colocar exemplos etnográficos comparativos de outros contextos etnológicos europeus e mundiais com morfologias e significados semelhantes aos do caso de estudo apresentado.

 

Seguidamente, Rosa Cramez, licenciada em turismo pela UTAD e mestranda em antropologia pela UTAD-ISCTE, afirmou-se como “doceira” de quarta geração e não apenas como empresaria. Começou a sua excelente apresentação pela contextualização da doçaria conventual no quadro de relação entre alimentação, identidade e património cultural, para a continuação justificar o por quê da construção de uma candidatura a património cultural imaterial da humanidade da doçaria tradicional portuguesa. Com base na importância dos conventos como difusores da doçaria tradicional, apresentou diversos exemplos nacionais e internacionais deste fenômeno, para mais tarde centra-se na experiência da sua inovadora empresa, Casa Lapão, única pastelaria de Vila Real destacada no Guia Michelin. Rosa Cramez falou logo dos processos de produção dos seus doces (pitos, covilhetes, cristas de galo, cavacórios, pão doce, ganchas, etc.), que são feitos de forma slow, artesanal e com valorização dos produtos locais. Assim por exemplo referiu o uso na sua empresa de 3000 kg de abóboras porqueiras, todas elas de produtores de Trás-os-Montes. A continuação abordou as mudanças na tradição, a industrialização e as suas consequências nas formas de produção e consumo e o valor do turismo como mais-valia para os doces conventuais e tradicionais. O turismo, segundo a oradora, é um aliado desta produção que pode dar notoriedade aos produtos, como o deu aos pastéis de nata e os pastéis de Belém. Rosa Cramez fechou esta primeira parte da sua intervenção frisando a sua participação no programa da RTP Best Bakery, o seu empenho em divulgar a tradição entre os escolares mais jovens, que visitam a sua fábrica periodicamente, e deu também umas notas sobre o futuro da sua empresa, que passaria pela ligação com as quintas do Douro e uma mais forte ligação com o vinho do Porto e outros vinhos da região.

No posterior debate com os assistentes, foram abordados entre outros assuntos: a) a oportunidade de certificação da qualidade dos doces (ex. IGP); b) a expansão no Brasil, Moçambique e outros países destes doces e as suas adaptações locais; c) a falta de produtos locais como a farinha de centeio (“ralão”) e farinhas de trigo locais para fornecimento dos pasteleiros; d) os diferentes tipos de doces conventuais (doces a colher, doces pequenos e doces grandes); e) a relação entre estrutura social e a doçaria; f) as dificuldades na conservação de determinados doces como os pitos de Santa Luzia.

E como remate ao seminário, os assistentes realizaram uma prova de doces de Casa Lapão, comentada com grande criatividade por Rosa Cramez.

Texto de: Professor Dr. Xerardo Pereiro